História de Betinha - Parte 04
Oiê...
Nesta parte 04 descrevo uma vida paralela e estranhamente contrária ao descrito na parte 03. Algo completamente surreal, pois analisando minhas memórias de forma plena cheguei a conclusão de que tudo que narrarei nas linhas abaixo aconteceu ao mesmo tempo que eu estava com Anderson.
Contudo, não vou partir do ponto deixado da parte 03 e sim da parte 02, nos meus primeiros anos escolares. As lembranças que tenho da pré-escola são muito vagas, apenas que eu brincava tanto com meninos quanto com meninas. Não havia uma separação clara. Lembro-me que na minha lancheira eu levava o lanche mais “chic” entre as crianças. Era morangos com creme de leite. Eu mentia dizendo que eu tinha feito... As outras crianças até acreditavam.
Lembro da professora dizer meninos para direita e meninas para a esquerda. Fui para a esquerda e a professora pegou no meu braço dizendo: “Betinho, você não é menina”. Uma supervisora disse para a professora “ele confundiu feminino com menino. Você tem que falar meninos para um lado e meninas para outro”.
Nesta fase da infância também lembro de envergonhar minha mãe, quando ela estava mostrando para uma amiga fotos muito antigas dela na praia. Na foto, ao lado da minha mãe havia uma menininha de biquini. Quando a foto foi mostrada, antes da minha mãe comentar eu falei “essa sou eu”. Minha mãe com um sorriso amarelo e envergonhado disse para a amiga “esse menino gosta de brincar”. A amiga da minha mãe disse “comediante”.
Voltando ao ambiente escolar, lembro-me no pátio do colégio Estadual, três ruas da minha casa, onde minha mãe segurava minha mão e a Júlia segurava a mão da mãe dela. Uma mulher, com microfone, lia listas de nomes e dali as mães levavam seus filhos para as salas correspondente. Eu e Júlia caímos na mesma sala e nossas mães nos levaram para a sala. Lembro-me de entrar e ficar em uma carteira perto da professora, (meu nome começa com A) e a Júlia bem mais longe.
Passado algum tempo eu, a Júlia e outras meninas sentávamos juntas em uma fileira próxima a professora. Obviamente os meninos me chamavam de bicha, viadinho, mariquinha e etc. Minhas amigas diziam “não liga não”.
Da primeira até a 4ª série, não houve problemas significativos. Cheguei até fazer amizade com alguns meninos, mas sempre mantinha-me no grupo das meninas. Falávamos de esmalte, maquiagem e etc. Lembro de um dia ter furtado um batom e um esmalte da minha mãe e levado para a escola. Eu e as outras meninas pintamos as unhas e passamos batom. O batom era fácil de tirar, apenas com água. Já as unhas, eu havia esquecido de furtar também a acetona. Uma das meninas, Alice, disse “minha mãe vai me bater” (A mãe dela era evangélica e não aceitava). Disse a elas que precisávamos da acetona (já sabia de tanto observar minha mãe e a manicure dela) e fomos na aventura de encontrar uma acetona.
Saímos igual malucas e lembrei de uma professora que sempre andava com as unhas bem feitas e cabelos bem arrumados. Cheguei a pensar que poderia ser igual ela quando crescesse.
Fomos até a sala dos professores e a chamamos. A professora Estela veio até nós e perguntou: “Qual é o problema meninas?” Ao me ver ela mudou “Qual o problema Betinho?” Disse a ela que a Alice havia passado esmalte e a professora exclamou “nooosssa”, ao ver a Alice mostrando as unhas. Outra professora apareceu e trouxe a acetona e começou a limpar as unhas de Alice. Mostrei para a professora Estela minha unhas e ela fez uma cara esquisita, olhou para os lados e disse bem baixinho no meu ouvido: “Que isso menino... você quer virar menininha?” Prontamente respondi que sim e a professora riu bem baixinho e pediu para que eu entrasse na sala dos professores. Eu entrei e ela segurou minhas mãos e disse para a outra professora que limpava as unhas de Alice: Me dê um pouco dessa acetona”. Outras professoras vieram ver, incluindo um professor. O professor Clésio disse: “Barbaridade...Meu Deus. Mas Jesus vai te salvar em algum momento” Foi a primeira vez que tive contato com evangélico.
Na quarta série foi quando começou o pesadelo. Um menino chamado Erick começou a me perseguir. Certa vez ele puxou minha calça até rasgar e depois me empurrou, tentei bater nele mas ele me deu um soco e começou a rir. Uma professora, não lembro, separou.
Em uma outra ocasião ele passou a mão na minha bunda e me empurrou nas carteiras. Todas as vezes que ele me agredia eram feitas quando não havia professor ou no intervalo. Nesta ocasião lembro-me caindo não chão e ele começou a gritar “Bicha”, “bicha”, “bicha”... as outras crianças da sala, com exceção das meninas que eram minhas amigas, entraram no coro gritando “bicha”, “bicha”, “bicha”... Fui para minha carteira, abaixei a cabeça e chorei bastante. Quando a professora chegou, perguntou e eu disse chorando: “me chamou de bicha”. Até hoje tenho profundo ódio dessa lembrança, das crianças gritando “bicha”, “bicha”, "bicha". Cena que repetiu-se em outras ocasiões, com resultado choro.
Certa vez uma amiga disse para eu não chorar quando a sala gritasse “bicha” e que eu tentasse bater em Erick. Lembro dele na frente gritando “bicha” e eu correndo na direção dele. Ele era maior e me deu uns dois murros e depois me agarrou no pescoço. Nisso, em reflexo peguei um lápis e cravei na perna dele. Ele urrou de dor e saiu sangue na perna dele. Fiquei com muito medo. Uma professora que chegou no local me agarrou pelo braço, nervosa dizendo “o que você fez moleque”. Eu não sabia o que dizer, estava atônito. Neste dia fiquei na coordenação com outros meninos bagunceiros (de outras salas). Um deles olhou para mim e disse: “você furou ele? Você vai para a fébem (era uma prisão de menores)”.
Meus pais foram chamados e saímos da escola tarde da noite. Lembro do meu pai dizer ao vice diretor Juvenal que eu estava me defendendo. Em casa minha mãe disse “vira homem menino, se não eles vão te persegui sempre”.
Fiquei sem ir para a escola umas duas semanas e na volta haviam me mudado de sala. Um dos meninos na sala me perguntou: “Você furou o Erick?” Respondi que ele me batia sempre e que me defendi. Nessa nova sala tentei enturmar com algumas meninas, mas todas elas pareciam ter medo. Uma me falou que a mãe dela disse para não conversar comigo. Fiquei isolado até o final do ano. Triste fiquei em recuperação em quase todas as matérias, mas passei de ano.
Na quinta série eu tinha uma única amiga, Flávia, e sempre andávamos juntas. Em um intervalo desta série, no pátio da escola, eu vi Érick. Ele estava perfeito, mas estava em outra sala. Quando ele me viu ele gritou novamente “bicha” e disse que ia me furar também. Fiquei com medo de novo. Muita gente dizia também que Erick era irmão de traficante e que iria me pagar.
Dentro da sala eu ficava apavorada pensando na hora da saída e que eu deveria correr e não encontrar mais o Erick. Acontece que sala de aula tinha um grupo de meninos que diziam fazer parte de uma gangue, mas era somente na sala de aula. Eles falavam que era a gangue da mão negra. O menino líder era um menino chamado Geremias. Essa gangue já tinha sacado alguns trejeitos meus e me chamavam de bicha, o que pelo condicionamento fazia-me ficar nervoso. Em um determinado dia eles vieram me atazanar e me chamaram de bicha e ali parti para cima do menino mais fraco, Max. Dei alguns socos no rosto dele e vi o nariz dele sangrar. Ao invés de Geremias e os outros meninos defenderem ele, começaram a gritar a meu favor e me parabenizar. Geremias me ergueu e disse: “Tá virando homem”. Fiquei com muita dó do Max e dias depois pedi desculpa para ele. Ele passou a andar comigo, mas Flávia passou a me evitar. Certa dia cheguei na Flávia e ela me disse que o pai dela (que nunca vi) tinha dito que eu era violento e que ela deveria parar de andar comigo.
O incrível de tudo isso era que eu não falava nem para minha família e nem para o Anderson (parte 03) muito desses episódios. Somente um dia Anderson foi na saída da escola (não estava trabalhando neste dia), pela manha, para não deixar o “Erick me pegar”.
Lembro-me de ter entrado para o grupo “mão negra” pensando: “se eu fazer parte deste grupo o Erick não me pega”. O grupo era de bagunceiros e viviam ironizando e tirando sarro dos professores. Geremias era um menino bem violento e confuso. Era criado pelos tios, pois a mãe estava sem destino e o pai preso. Geremias me olhava com vontade de ajudar a me defender como ele. Quando o grupo batia e humilhava algum menino afeminado das séries anteriores, Geremias me cobrava participar, o que era estranho. Fazia por que tinha medo do Geremias se voltar contra mim.
Certa vez um dos meninos da “Mão negra” apanhou de um menino de outra escola. Geremias e eu comentamos e eu falei, “temos que bater em quem bate na gente”. Geremias concordou e deias depois, quase todos os meninos, depois da saída da escola, pegamos o agressor e demos uma surra. O menino saiu correndo depois de levar chutes e socos. Foi aí que pensei em dar um fim nas ameaças do Erick.
Comentei com Geremias que também qualquer ameaça ao grupo tinha que ter resposta e certo dia nos juntamos em uma tarde na frente da escola, perto da casa do Erick, e juntos fomos até o Erick que estava com um outro amigo na rua. Começamos a bater nos dois, mas o colega dele correu. Batemos tanto no Erick que comecei a reparar algo estranho: sangue e o Erick não se defendia com mais vigor. Ele estava lento e um dedo dele parecia pendurado. Geremias segurava um pedaço de pau e já tinha dado algumas pauladas no Erick.
Quando vi que Erick estava com o dedo pendurado, um corte na cabeça e sangue escorrendo, eu gritei “chega gente”. Sem querer Geremias acertou uma paulada em mim e retrucou: “vamos fuder mais esse bosta”. Mas aí eu disse, ele vai morrer... Nisso dois adultos se aproximaram e os meninos da gangue correram, menos eu. Um dos adultos me reconheceu e disse: “você já furou ele seu porra... quer matar ele?”. Saí correndo com remorso e no dia me escondi.
Fiquei com muito remorso, aponto de não comer por um dia inteiro. No dia posterior, conversei com um dos meninos da sala que não eram do “Mãos negra”, chamava-se Jander, filho do professor Clésio (o evangélico) e pedi para ele saber como estava Erick. Jander disse que Erick quebrou um dedo, mas estava bem.
Nova mudança de sala aconteceu, o “mão negra” foi desarticulado. Na sexta série continuei bagunçando, eu e alguns outros meninos havíamos lançado o “Manos”, um grupo de bagunça (mas nada como o “mão negra”, não batíamos em efeminado e não fazíamos vinganças). Nos intervalos falávamos com Geremias, que nos passava dicas e ideias de zoar todo mundo. Naquele ano, Geremias encrencou com um professor de biologia. Só sei que Geremias, na sala que ele estava, disse ao professor: “você está fudido seu cuzão”. O professor o pegou pelo pescoço e o arrastou até a secretaria gritando: “esse moleque me chamou de cuzão”. Nunca mais vi o professor e o Geremias. Geremias foi para outra escola, o professor, não sei.
Por ser amigo de Geremias, muita gente começou a me evitar. O grupo “Manos” também se desfez e fiquei os últimos meses sozinho na sala. Só conversava com Jander, o menino ultra evangélico e filho do professor Clésio. Meus pais me colocaram em uma escola particular barata, paga com ajuda de um tio que tinha uma situação melhor. Neste tempo, ainda continuava me relacionando com Anderson e fiquei amigo de Jander.
Para não me estender, digo aqui que um acontecimento traumático (antes de ir para a escola particular), provocado por Anderson, fez-me largar tudo e virar evangélico, junto com Jander e toda sua família. Isso ficará para a Parte 05.
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